DANÇA E EXPRESSÃO CORPORAL: UMA ANÁLISE JUNGUIANA SOBRE A TERAPÊUTICA ARTÍSTICA

“Movimento é medicamento; ponha a psique em movimento, e ela curará a si mesma” Gabrielle Roth

A proposta deste capítulo é prioritariamente conceitual: oferecer trampolins teóricos para entender e estender o alcance da dança, através de uma reflexão aprofundada sobre as instâncias que o corpo e o movimento podem nos levar. 

A dança pode ser considerada uma das mais antigas formas de realizar arte e comunicação, um recurso que o homem carrega dentro de si desde tempos imemoriais; antes mesmo de polir a pedra, construir utensílios, armas ou abrigos, o homem batia mãos e pés ritmicamente… e dançava. 

A arte, como a ciência, é uma atividade através da qual representamos aspectos relevantes do mundo objetivo e subjetivo, permitindo-nos ampliar o campo da consciência. A finalidade não é só proporcionar uma espécie de prazer, mas de fazer brotar o conhecimento de algo anteriormente desconhecido. 

Nas fases primitivas do desenvolvimento social, inteiramente dominadas pela consciência mítica, a dança foi um elemento facilitador para o homem selvagem visualizar um mundo mais amplo que o momento e o local particular de sua existência, permitindo-o simbolizar a vida humana de forma mais genérica (pontuada pelos diversos ciclos de nascimento, fertilidade, acasalamento, morte…). Este foi o início do desenvolvimento daquilo que Jung chama o Impulso espiritual, aquele que favorece a diferenciação entre significação e simbolização no pensamento humano. 

Não existe povo sem dança (PORTINARI, 1989); o ritual da dança, em todas as épocas, pretendeu impulsionar o ser humano a criar formas simbólicas para o sentimento, e ampliar nosso potencial expressivo diante de experiências as quais a palavra não alcança. 

Como todas as outras atividades humanas, entretanto, a dança também saiu do nível de exploração individual, instintiva e orgânica para a condição de saber padronizado, sistematizado, e sujeito a métodos particulares para sua transmissão. As pessoas que sentenciam “não saberem dançar” se referem exclusivamente à sua habilidade em reproduzir movimentos codificados por alguma técnica, uma experiência de impotência que pode ser decorrente de motivos diversos. 

A essência do movimento terapêutico prioriza outra via: ajudar o indivíduo a conectar com seus impulsos internos, e restaurar a direção do crescimento potencial. 

A dança terapêutica pretende encontrar uma via de acesso ao inconsciente somático, aumentando os recursos para a comunicação com a história reservada pelo corpo, um verdadeiro acervo 

autobiográfico, que comprova nossa presença no plano físico, sujeito à constrição do tempo, do espaço e da sombra. 

Todas as partes do corpo desempenham, em algum momento da vida, a função de símbolo estruturante do desenvolvimento psíquico; isso significa que diferentes partes fornecem, em diferentes momentos, inputs simbólicos que alimentam a discriminação da identidade psico- corporal. Esta será tanto mais rica, quanto mais símbolos com possibilidade de elaboração puder comportar (em intensidade, variedade e qualidade), sendo um processo permanente, mesmo diante de símbolos que já foram elaborados. 

O símbolo, ao entrar na consciência, atualiza o inconsciente perante esta, e produz uma desarrumação da ordem vigente; apesar de necessário e criativo, o novo normalmente desacomoda e gera ansiedade. 

Ao viver criativa e adequadamente a realidade do corpo, se tem a rica possibilidade de transformar alguns padrões de movimento, de tensão e de colapso, intervindo também sobre todas as dinâmicas psicológicas subjacentes a eles. 

No momento da dança, os movimentos devem ser incitados a obedecerem ao comando interior, sem deformá-lo com a oferta de formas de movimentos já conhecidas ou estabelecidas que restringem a liberdade de criação. A pulsão de expressão, que pode ser representada, sem superlativo, como um impulso, deve ser a fonte de onde vai brotar todo movimento. Por isso a dança terapêutica não se atém ao desempenho atlético ou à busca de uma forma perfeita. Ela se remete ao mundo interior, onde nascem também todos os gestos, posturas, e registros somáticos relativos às nossas emoções, desejos e necessidade de comunicar. 

LIBERTANDO A EXPRESSÃO 

Conta uma lenda chinesa, que após ter realizado a mais bela, quase divina, escultura em madeira, o artesão foi incitado a ensinar sua técnica: “Me preparei interiormente, esvaziando todo conteúdo mental, e fui à floresta, olhar os troncos; de súbito vi uma peça inteira, com todos os detalhes. Depois apenas libertei-a do tronco”. 

Assim como a peça da lenda, a construção de uma personalidade baseada na mediação egóica nos vai transformando em esculturas divinas presas dentro de troncos. Empreendemos uma jornada heróica de construção da personalidade, num esforço necessário e estruturante de sublimação via função paterna, ou seja: precisamos transcender a vida natural, matriarcal, representada pelo corpo, que vai se transformando no depositário da nossa sombra; todo conteúdo reprimido pelo ego, bem como o registro emocional e significativo de nossa história, vai se tornando inconsciente, sendo inscrito no corpo através de uma memória somática (cinestésica, proprioceptiva e autonômica). Estratégias e modos fixos de estar no mundo vão se 

organizando como consequência, bem como padrões de movimentos e posturas (psíquicas e corporais). 

Tais memórias são constituintes das couraças musculares do caráter (REICH, 1972), e descrevem a história de como nossa energia vital e criativa vai se tornando contida e limitada. Na mesma medida que velam o fluxo vital, revelam também um caminho possível para manifestação do nosso devir, do potencial latente que ainda permanece inconsciente em nós mesmos. 

Enquanto a forma revela as estratégias de caráter, o movimento delata os hábitos de esforço – padrões repetitivos e habituais de movimento (LABAN, 1978), moldados pela seleção restritiva e pelos aprendizados que começam no nascimento, e chegam a elaborações complexas como comportamento de gênero, comportando fortes traços culturais e biográficos. 

Os movimentos dançantes, assim como os gestos habituais, delatam os hábitos de esforço, afinal dança é a expressão de gestos elaborados com alguma intencionalidade. 

Para favorecer o dançar expressivo, é bastante útil desorganizar estes hábitos e renegociar com as couraças, permitindo a emersão do movimento criativo, onde a consciência participa, mas não dirige; coopera, mas não escolhe, permitindo assim que o inconsciente fale e se atualize perante a consciência. 

Usaremos, para estruturar e aprofundar as reflexões sobre a dança expressiva, as categorias básicas elencadas por Mendes (1987) como sendo os elementos constituintes da dança: Forma, Movimento, Espaço e Ritmo

FORMA: O ALFABETO DO MOVIMENTO 

A Forma está em tudo o que se manifesta de maneira delimitada, concreta e visível à nossa apreensão. Através dela podemos perenizar os impulsos, e possibilitar uma base comum, generalizável e estável para a comunicação. Mas a mesma cristalização que delimita, permitindo que algo se corporifique, também limita, o que pode ser experimentado como algo desagradável, mas não necessariamente negativo. 

Na criança, o baixo nível egóico é associado a uma alta integração da personalidade, o que implica numa vivência predominante da polaridade prazerosa. Seu amadurecimento está vinculado a uma diminuição dessa integração e a uma crescente tensão psíquica gerada pelo conflito entre as experiências do ego e as do sistema inconsciente autônomo. 

A formação do ego volta-se então para o mundo, tendo-o como referência e como meta, destinando-se a desenvolver e organizar uma personalidade individualizada e adaptada às realidades intra e interpsíquicas. 

A gradual separação do inconsciente e a consequente autonomia do ego é sentida pelo infante como uma ruptura da ordem natural, não só pela inércia oferecida pelo inconsciente em diferenciar-se, mas também pelo crescente nível de conflitos e tensões com que o ego começa a 

se deparar. Esse momento crítico é representado mitologicamente como a luta do Herói contra o dragão na tentativa de sair do estado de entranhamento com a “Mãe Terrível” (NEUMANN, 1990). Nessa luta, o filho dos Pais Primordiais deve provar sua natureza heróica, transformando- se de algo criado e impotente em um ser potente e criador. Por isso ele é duas vezes nascido. 

A experiência do conflito e a experiência da culpa são quase idênticas; todos nós reagimos à tensão conflituosa com culpa. Arquetipicamente isto é vivenciado pelo fato de que a estrutura do ego se desenvolveu através de um estranhamento em relação à totalidade original do Self, o que é mitologicamente representado pela perda do paraíso ou pela separação entre o homem e Deus. 

Os padrões dos pais são incorporados pelo ego, bem como as expectativas que têm ao nosso respeito. A educação que nos é oferecida impõe limites à autoexpressão e ao livre fluir das pulsões e instintos (portanto da energia vital), que devem ser canalizados para que atinjam centros mais elevados de consciência. O ego deve aprender a direcionar sua energia para um objetivo específico, o que é feito através da vontade e determinação. Assim, nossa primeira forma de consciência é amplamente estruturada baseando-se no controle e na repressão de ímpetos instintivos e nas obtenções externas de aprovação (construção da persona). O “eu” cresce aprendendo autorrejeição, resistindo às gratificações do instinto e estabelecendo uma adaptação “adequada” às exigências coletivas. Quaisquer características ou inclinações individuais a priori do Self que não sejam pertinentes a esse padrão de comportamento externo, são separadas da imagem consciente que o ego tem de si. 

O sistema do ego implica num sentido de continuidade de corpo e mente em relação a espaço, tempo e causalidade, baseado nas funções da memória e da lógica, cada vez mais desenvolvida à medida que a criança afasta-se de seu corpo literal/instintivo e conquista a dimensão simbólica; o ego constitui-se numa unidade que resiste ao fluxo de mudança, em oposição ao inconsciente, que permanece em contínua mutação. A consciência vai sendo formada por um agrupamento gradual de fragmentos, de uma forma bastante intensa nos primeiros anos de vida, quando o ego infantil está ávido por sentidos e referências que o ajudem a adaptar-se a este mundo. Crenças e padrões culturais vão nos tornando Adultos – Adúlteros: diferentes de nós mesmos, criando-nos automatismos que usamos, desavisados, no perceber e no reagir ao mundo. 

O que não podemos perder de vista é que, ao desenvolver o que Freud (1976) e Reich (1972) designaram como “sintomas neuróticos”, o homem se torna um ser real, escrevendo sua biografia no livro de sua vida – seu corpo; ele está dando um passo em direção à sua própria diferenciação, portanto, um passo em direção à sua saúde psíquica. 

Assim, nossos pais deram a luz ao nosso corpo, e nosso corpo é o útero da nossa alma, da nossa vida anímica; o nascimento da alma é um ato que devemos realizar por nós e em nós mesmo, até que finalmente possamos viver de novo corpo e espírito como uma unidade. 

A finalidade do trabalho corporal através do elemento Forma deve revisitar esta trilha heróica, arquetípica, de desenvolvimento da personalidade, oferecendo: 

-suporte para o estabelecimento e a estabilização egóica, enquanto o ego ainda estiver em seu estado formativo (pela cronologia do desenvolvimento, ou nas estruturas psicóticas); 

-fomento de recursos para a relativização e flexibilização das estruturas corporais “neuróticas”, quando a força dos hábitos se tornou por demais restritiva facilitando, assim, o sistema psico- corporal a se tornar mais acessível a mudanças; 

-identificação dos padrões particulares de organização somato-egóicas, de maneira a potencializar recursos pessoais já existentes, e implantar estratégias de enfrentamento das dificuldades. 

NO MOVIMENTO: O DISCURSO DA DANÇA 

Quando a forma entra em Movimento, o alfabeto pode se organizar em um discurso expressivo; através dele contamos nossa história e transmitimos nossa emoção. 

Enquanto os movimentos dos animais são instintivos e basicamente realizados em respostas a estímulos externos, os movimentos do homem permitem-no expressar e comunicar algo do seu interior. Ele tem a faculdade de se tornar consciente dos padrões que seus impulsos criam, e de aprender a desenvolvê-los, remodelá-los e usá-los. 

O movimento é a base da consciência. Não podemos perceber, sentir ou pensar sem uma série de ações complexas, que envolvem ativamente o sistema nervoso como um todo. Ao contrário, só reconhecemos o que está dentro de nós quando os músculos da respiração, coração, face se organizam em padrões conhecidos por nós. Reconhecemos o estímulo para uma ação ou a causa para a resposta quando nos tornamos suficientemente cônscios da organização dos músculos do corpo para a ação correspondente. 

O desenvolvimento sensório-motor tem também um papel crucial na formação das funções sintetizadoras do ego. 

A cada novo nível de desenvolvimento, novas capacidades motoras fornecem possibilidades de interação com o mundo, e a realidade vai se tornando um “lugar”, ganhando corpo e existência, onde os mundos de dentro e de fora se influenciam reciprocamente. Quanto mais complexas e maiores as habilidades motoras se tornam, tanto mais amplo se divisa o horizonte de exploração do indivíduo (como o salto de horizonte que uma criança conquista quando consegue sustentar os músculos de sua coluna, e ganhar a verticalidade, ou a liberdade que adquire quando deixa de engatinhar pra ficar em pé). 

À medida que o indivíduo estabelece comportamentos exploratórios saudáveis, também vai reconhecendo suas próprias competências; é no confronto com experiências difíceis que se desfia a própria força e a capacidade de lidar adaptativamente com os desafios; na lida com o mundo o indivíduo vai se conhecendo e à sua capacidade, bem como construindo uma imagem de si mesmo relativamente fixa e estável, que tanto pode apoiar quanto cercear – pois agimos de acordo com nossa autoimagem, e esta, governa todos os nossos atos. 

Continua…

 

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Liana Netto, Psicóloga clínica, doutora em Medicina (UFBA), pós-graduada em Psicoterapia Analítica Junguiana pelo Instituto Junguiano da Bahia. Ensina nacionalmente e internacionalmente cursos autorais e módulos da formação em Experiência Somática, explorando a conexão corpo/mente dentro do viés analítico, agregando também em seu trabalho recursos expressivos de Arteterapia, expressão corporal, Taijiquan e Jogo de Areia.