Conforme a Teoria Polivagal (Porges, 2012), nossos 3 circuitos neurais de sobrevivência: sistema nervoso (SN) parassimpático mamífero – vago ventral, SN simpático e SN parassimpático vago dorsal, têm um funcionamento e interação dinâmica e, como regentes da nossa fisiologia, nos ajudam a modular respostas adaptativas para os eventos em contextos distintos de segurança, perigo e ameaça à vida.
As fibras vagais do Núcleo Ambíguo (parassimpático ventral) e do Núcleo Motor Dorsal (parassimpático dorsal) têm estrutura e funções distintas. As fibras ventrais são mielinizadas e contêm um ritmo respiratório, que produzem a Arritmia SinusIal Respiratória, um índice de vulnerabilidade ao estresse; representa a amplitude do ritmo respiratório na frequência cardíaca: uma marca da influência vagal no coração. As fibras dorsais não são mielinizadas e não têm ritmo respiratório.
O vago mielinizado (ventral) é ativado quando o ambiente é percebido como seguro, expressando duas características importantes:
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As vias motoras vagais mielinizadas (sistema ventral) atuando sobre o marca-passo cardíaco (nó sinoatrial) diminuem o ritmo cardíaco, inibindo os mecanismos de luta-fuga do simpático, amortecendo assim o sistema de resposta ao estresse do eixo hipotalâmico-pituitário-adrenal (HPA) (ex liberação de cortisol) e reduz a inflamação por meio da modulação às reações imunes (ex citocineses). O sistema ventral também modula o sistema de imobilização dorsal, o que permite a promoção de estados comportamentais tranquilos, e imobilidade sem medo. Metaforicamente podemos considerar que o processo evolutivo, resultante na aquisição do componente exclusivamente mamífero da regulação vagal adicionou, ao “interruptor” do nosso SN (ligado-desligado = simpático-parassimpático), um “dimmer”; isso permite que nosso SN tenha matizes de possibilidades de estados, entre o “todo acesso/ligado, simpático” e o todo apagado/desligado, parassimpático dorsal”, incrementando variabilidade de respostas e matizes também comportamentais, que promovem um estado corporal eficiente para que haja crescimento e recuperação (homeostase visceral).
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Por meio do processo de evolução, o núcleo do tronco encefálico que regula o vago mielinizado (ventral) tornou-se integrado com o núcleo que regula os músculos da face e da cabeça. Esta integração resulta na ligação bidirecional entre os comportamentos de engajamento social e os estados corporais viscerais. Ou seja: o olhar, a expressão facial, a audição e a prosódia estão vinculados neuroanatomicamente e neurofisiologicamente com a regulação neural dos estados VISCERAIS QUE PROMOVEM O CRESCIMENTO E A RECUPERAÇÃO.
Outra informação interessante a ser agregada, para nossa reflexão acerca da relação entre estresse e inflamação, é que o sistema simpático se especializou em enfrentar ameaças vindas de fora (ex: ataques de predadores), enquanto o sistema dorsal se especializou em lidar com estresses que ameaçam a vida, ou com ameaças vindas de dentro do corpo (ex: inflamações, dor, febre, mal-estar
físico) – situações que implicam em uma grande demanda metabólica, e o sistema dorsal atua visando reduzir tais demandas. Isso aumenta a chance de sobrevivência do córtex e do miocárdio, ávidos por oxigênio, protegendo-os diante de suprimento reduzido – e será uma resposta de sobrevivência bem sucedida DESDE QUE seja episódica, ou seja, esteja circunscrita a um pequeno período de tempo. Se esta resposta dorsal diante de um processo inflamatório ou de uma desorganização visceral se torna crônica, o sistema fica preso em um ciclo vicioso pernicioso, em que o vago mielinizado ventral encontrará dificuldades em ser religado, e restabelecer sua regência protetora e organizadora das funções viscerais.
Aqui torna-se também necessário lembrar que o SN é um sistema de processamento de informações sensoriais provenientes tanto DO AMBIENTE quanto DAS VÍSCERAS, e que avalia continuamente o risco ao qual estamos expostos. Significa que, funcionalmente, as vísceras colorem a nossa percepção de objetos, situações e pessoas. A avaliação neural do risco não exige consciência e pode envolver as estruturas límbicas. Para nominar este fenômeno, Stephen Porges criou o termo NEUROCEPCÃO – que enfatiza um processo neural de percepção, capaz de distinguir características ambientais (e viscerais) seguras ou não, de forma pré-consciente.
Sob uma NEUROCEPÇÃO de perigo nossas pálpebras se fecham, a voz perde inflexão, as expressões faciais positivas diminuem, a consciência do som da voz humana fica menos acentuada, a sensibilidade em relação aos comportamentos de engajamento social diminuem. Então quanto maior a desregulação visceral cronicamente mantida, maior a neurocepção de perigo, que sustenta o trancamento da fisiologia nos estados dorsais (o ciclo vicioso) e aumenta a vulnerabilidade do corpo para as respostas inflamatórias, pois estão desprovidos da proteção regenerativa do sistema ventral.
A boa notícia é que além dos recursos somatomotores de regulação visceral, trabalhos somáticos que incluem toque nas vísceras, oferecem uma ferramenta de regulação profunda, mudando estados de neurocepção: se 80% das fibras nervosas do vago são aferentes (levam informação das vísceras de volta pro SN Central), então a restauração da coerência (como uma regulação rítmica, respiratória, vibrante e pulsátil) ajuda a romper o ciclo vicioso, e enviar feedback de segurança pro cérebro, religando as funções do vago mielinizado ventral. Isso cria um ciclo virtuoso de neurocepção que permite restabelecer o crescimento e regeneração.
Referências:
Stephen Porges – Teoria Polivagal, 2012
Morris, Ohman, Dolan, 1999, A subcortical pathway to the right amygdala mediating “unseen” fear. Proceedings of Nat Acad of Sci, 96, 1680-1685.
Liana Netto, Psicóloga clínica, doutora em Medicina (UFBA), pós-graduada em Psicoterapia Analítica Junguiana pelo Instituto Junguiano da Bahia. Ensina nacionalmente e internacionalmente cursos autorais e módulos da formação em Experiência Somática, explorando a conexão corpo/mente dentro do viés analítico.